por Marden Campos, OLAC
Uma notícia recente sobre a facilidade de burlar o sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas no Brasil* chama nossa atenção quanto a uma faceta pouco discutida do papel das estatísticas de longo alcance na sociedade contemporânea: a influência das pesquisas na construção da realidade social e a entronização dos censos como princípio científico de legitimação de práticas e métodos em áreas e contextos bastante distintos do levantamento estatístico de atributos populacionais.
O sistema de cotas prevê o preenchimento de vagas para alunos de baixa renda, para oriundos de escolas públicas e para indivíduos de cor preta, parda e indígena. Segundo o Ministério da Educação, as vagas reservadas às cotas devem atingir 50% do total de vagas das instituições*.
Longe de querer criticar o sistema de cotas, seus pontos fortes e fracos e as tentativas (ideais ou não) de reverter a histórica discriminação social por que passam os não-brancos e os pobres na sociedade brasileira, o objetivo deste artigo é problematizar a transferência direta da estratégia de levantamento de cor ou raça do Censo Demográfico para outras esferas da realidade.
Os estudos demográficos enfrentam constantes dificuldades de criação de marcadores étnicos e, consequentemente, de medir indicadores de cultura. Em termos do levantamento estatístico em si, esse tipo de quesito tem sido alvo de testes e estudos para entender a percepção da influência da cor ou raça em espaços da vida social, visando aprofundar a compreensão das categorias étnico-raciais utilizadas nas pesquisas e o aprimoramento dos instrumentos de captação*.
Contudo, mesmo pensando na finalidade estatística “por si só”, esse tipo de levantamento é extremamente complexo e polêmico, devido a uma de suas principais características: a auto declaração do entrevistado sobre sua cor ou raça, somada a declaração deste mesmo entrevistado sobre a cor ou raça dos outros indivíduos que com ele residem (recenseados não entrevistados). Além de ser complexo como levantamento estatístico, a transferência desse tipo de estratégia para outros espaços da vida social traz problemas ainda maiores.
Embora no censo a ideia de (“auto”) pertencimento étnico legitime o uso da “auto”declaração à cor ou raça sem a necessidade de processos extras de legitimação, no caso do ingresso nas universidades os problemas são de outra ordem. Por isso, os representantes de movimentos negros e outras organizações sociais criticam o critério da autodeclaração como forma de identificação de cor, dado que as universidades não dispõe, ainda hoje, de mecanismos efetivos de verificação. Eles são difíceis, inclusive dado que a autodeclaração no preenchimento ancora-se no quesito censitário, que permite um elevado grau de subjetividade, o que deveria ser evitado no caso do recebimento de cotas para ingresso na universidade*.
Para além dessa polêmica, oriunda da transferência equivocada de uma estratégia estatística adotada em um campo social (censo) para outro completamente diferente (ingresso na universidade) o que nos interessa neste artigo é um ponto que mais além do empréstimo de um quesito do censo para outra função social. O ponto central é o papel que os censos exercem como produtores de categorias sociais e, em última instancia, como função mediadora de processos de criação de realidade.
Embora comumente pensados como instrumentos “neutros” e «objetivos» que não fazem nada mais do que “descobrir” uma realidade que sempre esteve pronta, à espera das ferramentas estatísticas que vieram para retratá-la, já há muito tempo os estudiosos da ciência alertam para o papel construtivo que as pesquisas sociais exercem sobre a realidade.
Segundo Theodore Porter*, os censos também seriam responsáveis pela criação de tipos de sociedades e populações, na medida em que destacam determinadas dimensões e esferas da realidade em detrimento de outras e, nesse sentido, destacam aspectos da realidade que, em seguida, serão tratados como sendo a própria realidade.
No mesmo sentido, Sarah Igo* acrescenta que as estatísticas, além de não serem “pedaços” inertes e inocentes de informação, tiram sua força justamente desse «fato inocente». Pelo motivo de não parecerem representar opiniões ou interpretações, mas “apenas os fatos”, a elas é conferido um alto nível de autoridade, advinda da neutralidade da abordagem. A autora segue o pensamento de Hannah Arendt, quando afirma que o «Social» seria uma invenção do século XIX quando há, na criação dos Estados Modernos, a tentativa de medir os problemas “de todos”. Isso faz com que questões pessoais ou localizadas, como a existência de pessoas pobres ou indivíduos alcoólatras transformem-se em problemas sociais, na forma de índices de pobreza e taxas de alcoolismo.
Talvez ninguém tenha colocado tão bem essa questão quanto Benedict Anderson, em seu clássico Comunidades imaginadas* quando mostra como o Censo – juntamente com o Mapa e o Museu – é um mecanismo de poder que descreve a gramatica em que se baseia a imaginação coletiva comum, dando forma a esse coletivo e tornando-o algo real, embora indiretamente experimentado.
Não se quer aqui enveredar pelos debates seculares entre realismo versus idealismo e nem discutir se os objetos estatísticos são coisas reais ou frutos de convenções metodológicas, como bem fez Alan Desrosiere em seu La Política de los Grandes Números*. O que se pretende destacar é o papel dos censos como co-construtores da realidade, dada a força que carregam por serem feitos por institutos de estatística geralmente aceitos como oficiais e legítimos. As tabelas e gráficos originadas dos resultados do censo nos mostram facetas da realidade que acabam tornando-se a própria realidade.
No caso das categorias de cor ou raça, por exemplo, mulatos, mamelucos, cafuzos, morenos, entre outros, vão se tornando “pardos”; maxakali, xavante, caiapó e centenas de outros povos continuam sendo vistos genericamente como “indígenas”; japoneses, chineses, coreanos (mais alguns mal entendidos) vão sendo reificados como “amarelos”; por outro lado, grande parte da população abriga-se sob o manto dos “brancos”; e uma pequena parcela resiste como “pretos”.
Sem querer entrar no debate, importantíssimo, da busca por marcadores culturais e das dificuldades para a construção de indicadores objetivos dessas características, os problemas expostos neste texto mostram o quão complexa são as tentativas de tentar delimitar as diferenças raciais de uma sociedade, ainda mais quando saímos na esfera estatística “objetiva” para a aplicação prática de critérios para atribuição de cotas raciais.
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